Em outros textos lembro que já mencionei ter um sketchbook ou caderno de rabiscos. De vez em quando eu faço tiras que começaram como uma ideia nele, como é o caso de hoje.
Os sketchbooks são uma prática artística muito comum na qual artistas têm um caderninho dedicado a esboçar ideias sem regras. Isso permite experimentar novas técnicas, fazer estudos, explorar ideias e praticamente qualquer outra coisa que se deseje. Essa liberdade criativa geralmente rende bons resultados, e não faltam exemplos de sketchbooks muito bonitos, vistosos e coloridos.
É um hábito muito legal - isto é, se chegar ao ponto de ser um hábito. E nesse ponto eu sou muito falha.
Comprei o meu primeiro sketchbook em 2016, e apenas terminei a última página em 2022; colocando em outras palavras, eu estreei ele no ensino médio para concluir no último ano da faculdade. Logo que terminei, comprei o segundo, que está avançando mais rápido: em três anos preenchi dois terços das 98 folhas dele.
Essa latência, no começo, era muito ligada ao perfeccionismo. Com tantos sketchbooks profissionais pelo mundo, eu me sentia na obrigação de usar o meu caderno apenas quando tivesse uma ideia muito boa ou a certeza de que faria uma obra-prima. Na obrigação. Quando essa palavra entra, a liberdade criativa vai embora, às vezes levando a própria criatividade junto. Durante 70% do tempo em que usei esse primeiro sketchbook eu não desenhava muito bem, então além de tudo as poucas artes que acabavam nele eram uma certa decepção para mim.
Se você comparar o parágrafo anterior com qualquer artigo explicando como fazer bom uso desses cadernos, vai notar que eu violei todos os princípios básicos: não julgar o conteúdo do sketchbook, não colocar filtros, não fazer algo para mostrar para outras pessoas, criar um hábito de uso recorrente. Comecei o segundo caderninho para melhorar nisso e em outros sentidos.
De início deu mais certo: eu conseguia parar e fazer uma página aqui e ali, e com mais frequência. Mas ainda filtrava muita coisa pensando que algum dia alguém pegaria meu sketchbook, e o uso frequente não implicava uma rotina fixa. Meu segundo e atual caderno tem datas nas páginas preenchidas, e minha própria letra acusa que houve momentos em que fiquei mais de mês sem encostar nele.
No geral eu não me sentia muito impelida a usá-lo. Se eu queria fazer um estudo, pegava uma folha de papel qualquer; se tinha uma ideia para HQ, escrevia no meu celular o que fazer para depois também desenhar em um papel avulso. As únicas situações em que o sketchbook vencia eram quando eu estava por algum motivo chateada e queria tirar isso de dentro de mim. Até cheguei a fazer dentro do caderno uma série de tiras que apenas pode ser descrita como “depressão vitoriana” - minhas desculpas atrasadas para os poucos amigos que testemunharam esses desenhos.
Um dia eu cansei de mostrar o sketchbook para outras pessoas, e ele virou algo só meu. Agora coloco nele qualquer coisa que eu queira, mesmo se for muito pessoal, feio ou não der certo. Não é um caderno lindo de se olhar, já que quase tudo no interior são desenhos em grafite sem finalização, alguns com erros. Tampouco é feliz, pois os fins terapêuticos continuam e há muitos quadrinhos meio depressivos ali. Tem anotações de sonhos, testes de diálogos, esboços de tiras, estudos de anatomia todos misturados. Sem regra mesmo.
Escrevi tudo isso para explicar por que a HQ do começo desta newsletter saiu de um desenho em grafite beirando o ilegível e com um monte de linhas a caneta no verso. Eu pensei um diálogo, gostei e fiz o que na prática é um rabisco de borda de caderno. A foto está ruim, mas acredite quando digo que é o melhor que consigo com a página que tenho.
O conceito de potencial aristotélico é algo que lembro de ter lido em um livro de filosofia na escola. Coisas estranhas essas que a memória escolhe conservar.
Com esse rascunho do meu sketchbook eu tinha cinco falas; faltava um contexto antes e depois. Quando eu desenhei essa conversa no meu sketchbook imaginei os dois personagens em um café (foi tanto arbitrário quanto motivado por ter um recibo de freddo matcha colado nessa mesma página). Desenvolvi um pouquinho o cenário na minha cabeça, dividi as falas em mais quadros e decido que os valores flutuariam para fora das bordas dos painéis. É um jeito de tentar deixar uma conversa longa menos monótona de ler.
Essas ideia se tudo se traduziram neste esboço:
Comecei então a arte em si:
Eu dei uma pausa depois desse ponto, e quando voltei percebi que errei a perspectiva no primeiro quadro. Retrabalhado, ficou assim:
Na arte-final, fiz os contornos, os contrastes e depois as texturas. Cometi alguns errinhos ao traçar os balões, e corrigi com tinta branca no final.
Falei muito sobre cadernos e pouco sobre a ideia da tira, não é? Eu não tinha muito a dizer dela, sendo honesta. Esses personagens fazem parte de uma história maior que estou esquematizando, e com frequência eu posto ideias soltas dela.
Se tem algo em que meu sketchbook tem ajudado é a desapegar de erros. Eu tendo a ser muito critica do sobre tudo que desenho - por um lado é bom, já que sou autodidata, mas não é muito positivo em termos psicológicos. Ter consciência de que eu posso apenas fazer uma arte e seguir em frente mesmo se ficar ruim tem me ajudado a melhorar nesse aspecto.
Pelo visto o próprio terapêutico do caderno ainda permanece.
Recomendação de Música: “Morning Elvis” - Florence + The Machine