O que todas as fanfics têm em comum é o fato de serem baseadas em alguma história, fictícia ou não. No entanto, também é verdade dizer que esses textos quase nunca seguem o enredo original.
Até certo ponto isso faz sentido: se o original fosse perfeito, não caberia fazer uma fanfic. O amor dos fãs entra onde há um ponto de dor, como uma morte de personagem sentida, algum momento do roteiro que não ocorreu da forma como a fandom desejava, assim por diante. Se no livro o Fantasma da Ópera morre sozinho e com um coração partido, nas fanfics ele vive feliz para sempre com sua amada Christine.
Nem sempre convém aos fãs manter a história no contexto original para fazer essas edições; a inspiração vem, a imaginação vai longe, e quando se vê o Fantasma da Ópera é um professor universitário multimilionário com uma pequena cicatriz no canto do rosto, a Christine é uma estudante do terceiro ano de astrofísica, e os dois se conheceram por acaso no metrô. E o contexto de ópera? Os arcos de personagem? Para onde foram?
Para mim é muito engraçado esse paradoxo de amar tanto alguma coisa a ponto de escrever, às vezes por anos, um texto sobre isso, mas ignorando tudo que torna o original tão adorado. Mas isso só é evidente para quem lê, pois as pessoas que criam essas fanfics acham que tudo faz o mais perfeito sentido.
É uma nova versão do velho ditado: o amor é cego.
Em Fanfiction, o fato comum é que a série de TV imaginária à qual não estamos assistindo gira em torno de um assassinato; as HQs-fanfics, não. Aquela morte é vez ou outra mencionada, mas no fim do dia a investigação da polícia é no máximo um pequeno aborrecimento para os personagens, e não existe uma preocupação grande em saber o que aconteceu e por qual motivo.
A parte mais irônica é que esse descaso casual, por mais condizente que seja com a lógica das fanfics, surgiu de seriados de verdade. Eu já vi mais de um que se encaixava nisso, mas a situação era mais explícita na minissérie “Rellik” (2017).
Essa é uma série policial (os personagens são detetives procurando um serial killer em Londres) que é contada de trás para frente. Mais do que uma escolha estilística, isso tem conexão com o tema central - a ideia de que, revisitando o passado, é possível descobrir o que moldou a personalidade e ações de uma pessoa.
Porém, no desenrolar dos acontecimentos, vemos menos a motivação do assassino e mais a dos próprios detetives. Também vemos que eles ficam menos tempo investigando do que, hm. Namorando, por assim dizer?
Isso não significa que os personagens principais nunca trabalham. No fundo, os assassinatos nunca foram o ponto importante da série, e sim o modo como o protagonista construiu relações tortas com todas as pessoas em sua vida.
Fanfiction, como eu sempre relembro, não é baseado em nenhuma série de TV, mas parte de algumas ideias soltas de seriados que vi e gostei; “Rellik” é um deles. É minha segunda série favorita apesar de ter muitos buracos no roteiro.
Já é muito evidente que eu gosto de séries policiais estranhas?
Para a tira, dessa vez quis explorar a relação da Prefeita com a Advogada, viúva do assassinato na história. Mas também quis escancarar a indiferença que as duas têm em relação a essa morte. É uma fanfic, afinal; o foco é outro.
A primeira coisa que me veio à cabeça foi o diálogo, sem cenas específicas. Eu queria, porém, brincar um pouco com a estrutura da tira dessa vez. Não que eu tivesse uma ideia clara de como fazer isso.
Eu rabisquei no canto do papel ao acaso até chegar nesse layout: quatro painéis grandes e três menores dentro deles, formando um padrão à parte. Com essa estrutura já pensada eu distribuí as falas de acordo com um ritmo que me fosse mais interessante, que refletisse melhor as pausas e o sarcasmo do diálogo. E o resultado disso foi bem feliz, na minha opinião - os quadros maiores funcionam como um romance, e os menores quebram o tom.
A maior parte do processo foi justamente a etapa de pensar a HQ, mas isso dificilmente é material para fotos. Os desenhos felizmente são mais fotogênicos.
Primeiro, fiz os esboços e letramento:
Depois, a arte em grafite:
Fiz os contornos:
E, por fim, eu ponderei um pouco sobre como completar a arte-final. Algumas partes, como cabelos e árvores, já tinha determinado que preferia escuras, o que resultou na foto abaixo.
Olhei a HQ mais um pouco e achei melhor passar tinta preta no fundo dos três quadros menores. Coloquei algumas texturas e cheguei ao fim de mais essa tira.
No fundo, em qualquer história de mistério, os personagens se importam de verdade com o que está acontecendo? Ou seguem apenas o costumeiro, cada um vivendo uma fanfic em sua própria cabeça?
Em um dos episódios de “Rellik”, os policiais estão diante da porta da frente do apartamento de um suspeito. “Vamos entrar”, diz o chefe. O detetive que evidentemente tem menos tempo de cargo e mais moralidade intacta fala: “Mas não precisamos de um mandato de busca?”. Todos os colegas o olham com uma cara de decepção.
A cena corta para todos eles, já dentro do apartamento, abrindo gavetas e folheando documentos, distraídos. Nunca fiquei convencida de que eles queriam mesmo achar alguma coisa.
Recomendação de Filme: Minha intenção era recomendar “Rellik”, mas essa série teve o mesmo destino de todos os seriados de que eu gosto - saiu do catálogo de todos os serviços de streaming do Brasil. Céus, que saudade dos DVDs. Se você sabe de alguma forma (legal) de assistir, por favor me avise.
Enquanto estamos órfãos de minisséries caóticas com atuações impecáveis, recomendo o filme “A Trama Fantasma” (2017). Se você gosta de romances tóxicos, não pense duas vezes antes de assistir. Pontos extras por ser a cinebiografia de um estilista que não existiu e por mostrar a importância de cogumelos em um relacionamento.